24 de outubro de 2011

Lembranças


Debruçado sobre a mesa, com os olhos voltados para a janela da cozinha. Estava ele, solitário, lembrando dos tempos em que enfrentou o mais poderoso dos arcanjos. Estar só não era e nunca foi um problema.
Por mais que quisesse esquecer aquela batalha sangrenta, nada podia fazer. Aquelas lembranças lhe inundavam a mente, assim como fizeram os mares na época do dilúvio, que aliás, agora lhe era claro ter passado também por esta parte da história.
Inevitavelmente, lembrar da batalha, o fazia lembrar da única mulher que amou. Fora criado para defender e não para sentir, mas algo deve ter acontecido no processo de sua criação, pois os sentimentos em seu coração eram tão fortes quanto os de um simples ser humano.
Tão absorto que estava, não percebeu o dia passar. A escuridão da noite invadira os seus aposentos, portas e janelas estavam todas abertas ainda, mas nada o tirava daquele transe, ficaria ali ainda por muitas horas.
Lembrou do dia em que conheceu a filha dos homens que conseguiu fazer despertar o primeiro sentimento mortal em sua carne. Era linda, tinha olhos verdes, pareciam refletir o brilho de uma esmeralda. Ela o amou, sim o amou. Pois agora ela se foi, nunca mais a verá. Nunca mais a tocará.
Em prantos agora estava, não podia controlar o sofrimento que partia de dentro de seu coração, sentimento este que antes nunca havia sentido. Estava entregue. Se quisessem matá-lo, a hora seria essa, pois ele nada faria para impedir, na esperança de assim poder rever sua eterna paixão.
Enquanto os ponteiros do relógio davam infinitas voltas em torno de seu eixo. Os pensamentos dele davam voltas em torno do mundo. Lembrou-se então de seu arquirrival, aquele que sempre esteve em seu caminho nas suas inúmeras missões. Fora este o homem responsável pela maior parte de suas cicatrizes.
Se pudesse voltar no tempo ele pediria para não conhecer sua amada. Não seria tão feliz quanto foi, mas ao menos não teria se enfraquecido tanto, ou então, se assim fosse, ela ainda estaria viva.
Gaian, como era chamado entre os amigos humanos, ergueu-se e saiu de sua casa em busca de algo que ainda poderia lhe fazer sentido para continuar na Terra. Do contrário, rumaria de volta para onde venho, o Céu.
Logo na saída para a rua, viu uma mulher e uma menina, presumia que fossem mãe e filha. Ficou debilitado ao ver a felicidade estampada em seus rostos, percebeu que estava sendo egoísta, que a vida não foi feita para tão pouco. O fato de ter perdido a pessoa que amava não deveria fazê-lo desistir de seus propósitos, estar vivo era a explicação para tal.
Neste momento, parou ali mesmo, onde estava. Percebeu o quão humano tinha se transformado. Antes de viajar para a Terra, para o convívio dos homens, Gaian não precisava presumir, ele sabia a verdade. Ver aquela mulher e aquela menina e não saber se realmente eram mãe e filha de sangue lhe mostrou que estava mais carnal do que nunca. O egoísmo em sua mente lhe deu a certeza desta nova realidade.
Continuou sua caminhada sem rumo, agora já não sabia se precisava de algum motivo mais real do que aquele para voltar as origens. Antes que fosse tarde demais e se tornasse ser humano por completo. As limitações da carne sempre foram temidas para os anjos. Deixar todos aqueles poderes psíquicos e sua enorme força física de lado para sofrer?
Por outro lado, depois de ter conhecido Isabela, também conheceu o que era o amor, o sentimento mais gratificante que um humano podia sentir, mas os anjos não. Os anjos não conheciam o amor. Deus é amado pelos seres humanos, mas os anjos apenas o adoram.
Sem perceber, já haviam passado algumas horas desde que saiu de casa. Resolveu então se preparar para voltar junto ao exército angelical, sua missão na Terra acabara. Antes mesmo do seu primeiro passo de volta, ouviu um disparo de revólver, vindo não muito longe dali. Aproximou-se de um beco, entre dois prédios, para ver o que acontecia.
Encontrou um homem, alto e aparentemente muito forte com uma arma apontada para cima e o abordou. O homem se virou para ver quem estava ali, Gaian percebera que ele amedrontava um garoto de no máximo 16 anos e pediu para que ele se retirasse. O homem armado apontou a arma para Gaian, permitindo que o moleque escapasse.
Gaian perguntou ao homem porque precisava de uma arma para amedrontar uma criança se somente sua aparência já bastava. O homem, sentindo-se ofendido, disparou contra Gaian, que em um rápido movimento desviou seu corpo, não completamente, do percurso do projétil. Desviou mais por reflexo, pois anjos são imunes a armas de fogo.
O homem não acreditando ter errado o tiro, apertou o gatilho novamente e a arma falhou. Gaian partiu para cima dele e o pôs contra a parede pressionando-o e ameaçou dizendo que se encontrasse-o mais uma vez acovardando uma criança ou algo do tipo, ele mesmo colocaria um fim nele. O homem saiu correndo, apavorado.
Gaian procurou ao seu redor, mas não viu o garoto. Tomou rumo para casa e lembrou de todas as coisas ruins que viu desde que desembarcou na Terra, lembrou das quantas vezes que os arcanjos queriam acabar com a raça humana, devido ao ódio, ao rancor, e a tantos sentimentos negativos que só os humanos tinham. Naquele momento sentiu uma fisgada no braço e percebeu sangue escorrendo. Havia se ferido e precisava de cuidados médicos.
Para a sorte dele, ali perto havia um hospital, mas antes que chegasse lembrou-se que nunca antes havia visto seu próprio sangue. Quando se desviou daquele tiro, deixando que lhe acertasse de raspão, sabia que poderia deixar aquele disparo lhe acertar o coração, que nada aconteceria, mas estava enganado, agradeceu ao seu reflexo e percebeu que o fim do episódio teria sido diferente.
Quando entrou no hospital, uma enfermeira logo o amparou e lhe deu os primeiros socorros. Pediram então os seus documentos, mas Gaian informou que havia deixado em casa. Por alguns minutos ficou ali, sentado, aguardando para ser liberado. Neste tempo ele voltou a refletir seu passado. Quando foi lhe dada a missão de ir a Terra e proteger os humanos, junto de outros anjos, recebera vários documentos, estes lhe serviriam para circular em qualquer parte sem ter problemas com polícias ou outros tipos de autoridades.
Gaian levantou-se e disse as enfermeiras que já estava melhor e iria para casa, elas pediram que ficasse mais um pouco e ele insistiu que não era necessário. Naquele momento dois policiais entraram pela porta da frente e outro pela porta dos fundos, procurando por ele. Abordaram Gaian e perguntaram o que tinha acontecido com o seu braço.
Logo soube que eram os funcionários do hospital que haviam os chamado, afinal, fora baleado e estava sem os documentos. Gaian lhes contou a verdade, que abordou um homem que ameaçava uma criança, então os policiais lhe ofereceram carona para casa, para que poderia mostrar seus documentos. Obviamente aceitou e assim o fez.
Chegando em casa viu a porta arrombada e sabia que algo de errado estava acontecendo. Os policiais pediram para Gaian se afastar que eles iriam averiguar. Gaian permitiu, mas ficou receoso. Dois guardas foram pela porta da frente e o outro pela porta dos fundos, Gaian se perguntou se sempre faziam aquilo.
Antes que os dois primeiros chegassem à porta da frente, ouviram disparos nos fundos e, imediatamente, entraram correndo pela casa, Gaian os seguiu e antes que chegasse os guardas foram atirados contra ele, com o impacto os três encontraram o chão fora da casa.
De dentro do recinto aparecia um homem, alto e forte, com aparência demoníaca. Gaian logo o reconheceu e percebendo os policiais desacordados ergueu-se e se impôs ao seu eterno rival, Luchér. Era este o homem que matou a sua amada, se de homem poderia ser chamado. Luchér era sem dúvida o único ser que Gaian queria ver aniquilado, mas por suas próprias mãos.
Partindo para cima dele, Gaian resgatou toda a sua raiva guardada e investiu contra seu inimigo, mas foi em vão, com apenas um movimento Gaian foi detido e ainda arremessado contra a viatura que estava estacionada logo em frente a sua moradia. Foi então que se lembrou do ferimento no braço, sabia que agora era um mero ser humano e não restava-lhe mais nada divino em seu corpo agora carnal e mortal.
Luchér sabia disso e por isso que estava ali. Antes, quando Gaian ainda era um ser angelical, as várias batalhas entre eles nunca tinham um vencedor, pois suas forças se equilibravam tanto que os confrontos só terminavam porque alguém se intrometia. Mas naquela que estava por vir, seria diferente. Luchér com toda sua força demoníaca ainda intacta não teria pena do agora humano e fraco Gaian.
Partindo em contra-ataque para cima de seu agressor, Gaian mais uma vez não teve sucesso, Luchér o abateu facilmente, jogando-o contra a sua própria residência, derrubando o que ainda sobrava de pé.
Agora era Luchér que avançava, parou a poucos centímetros de onde Gaian estava deitado e lembrou-o das suas tantas batalhas que nunca haviam tido um fim, lembrou que nunca o vira assim ferido e sangrando, acrescentou que na verdade nunca vira qualquer um de seus adversários naquele estado, o mais humilhante possível.
Luchér também lembrou a Gaian de seu maior erro, se envolver com humanos. Que era por causa disso que agora seria, enfim, derrotado. Gaian respondeu em tom irônico, de que estava preparado para morrer, que não se arrependera de nada que havia feito, disse até que faria tudo novamente. Não se importava que o seu maior inimigo fosse o seu algoz, pois o que queria era ver sua amada novamente.
Luchér ergueu seu punho em direção a Gaian e disse que então seria misericordioso e realizaria o seu desejo. Gaian fechou os olhos e aguardou o seu fim. Passaram alguns segundos e nada aconteceu, quando abriu os olhos novamente viu seus amigos Sitael e Rochel derrubarem Luchér num golpe em conjunto e disseram para Gaian procurar Isabela, pois ela estava viva.
Gaian não acreditou e quis detalhes, mas os dois insistiram para que se retirasse, pois não havia tempo para explicações. Disseram que Luchér não conseguiu matá-la, pois Gabriel Arcanjo o impediu. Erguendo-se e recuperando todas as suas forças, Gaian viu seus ferimentos cicatrizarem-se instantaneamente, foi quando Luchér investiu um golpe contra os três, mas antes disso Gaian trouxe toda a sua energia para o seu punho e além de conter o ataque do inimigo, também o nocauteou acabando de vez com ele.
Naquele momento apareceu Gabriel Arcanjo, com Isabela aos seus braços, desacordada. Gabriel disse para Gaian que ela estava assim havia muito tempo e que precisavam fazer algo. Gaian a tomou e pediu para que acordasse, mas nada aconteceu.
Agora Gaian estava sentido dor novamente, viu suas cicatrizes voltando, então finalmente percebera. Anjos se tornam humanos porque passam a sofrer, passam a ser egoístas e passam a sentir dor. Isabela abriu os olhos e olhando para Gaian ela sorriu. Ele novamente recuperou sua energia e seus ferimentos cicatrizaram. Foi então que Gaian percebeu que os anjos também podem amar.


2 comentários:

  1. adriano, oi. muito bom! mas acho q não pode... o ineditismo vale p a publicação do livro.
    abç

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  2. Pois é.. por isso não publiquei antes, mas pretendia divulgar meu blog e aproveitei a situação, acho que que pelo livro, ainda não terá problema, pois tem muitos outros textos ainda que estão no aguardo...

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